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terça-feira, 21 de abril de 2020

Crítica - Anime: Pysycho-Pass - 1ª Temporada



Culpados até segunda ordem...


por Alexandre César

Anime cyberpunk  mescla bem ação, violência e filosofia



No século XXII, mais especificamente na cidade de Tokyo, o princípio de que "todos são inocentes até que se prove o contrário"não se aplica, sendo os cidadãos continuamente avaliados por um sistema intitulado de "Sybil" que analisa o estado mental das pessoas e as categoriza como potenciais criminosos ou não, e se por motivos pessoais, como stress, o nível de um indivíduo se altera, fazendo o seu estado passar de certa medição (100), ele passa a ser considerado “turvo”, sendo dada uma possibilidade de "cura" (terapia), de recuperação mental para indivíduos nesta situação. Caso essa medição chegue a 300 ou mais essas pessoas são classificadas como “irrecuperáveis”, sendo a sua sentença a prisão ou a morte, mesmo que não tenham cometido crime algum.

Contrastes: O veterano inspetor Nobuchika Ginoza e a
novata Akane Tsunemori, que tirou a maior pontuação e
 entrou para a polícia por acreditar "poder fazer a diferença"...


Produzido pela Production I.G. Japonesa, Psycho-Pass é um anime que estreou originalmente no dia 11 de outubro de 2012 no bloco Noitaminada Fuji TV sendo posteriormente adaptada para mangá, e começando a ser publicado em 2 de março na revista Jump Square. A série animada se compõe de 22 episódios de 30 min e atualmente veiculado pela Netflix.

Shinya Kogami, o principal e trágico, personagem masculino...


Nesta metrópole cyberpunk (ambientação recorrente aos animes) a polícia, em auxílio para as suas investigações, usa um grupo de prisioneiros "especiais", chamados Executores*(Enforcers), para ajudá-los a capturar ou matar esses indivíduos "não mais necessários". Para tal, utilizam uma arma especial, chamado de “Dominators”, ou "Os olhos da Sibila". Neste contexto temos como personagem principal Akane Tsunemori, uma jovem policial que acaba de ser transferida para essa divisão, tendo entrado para a polícia por suas excelentes notas (ninguém obteve uma pontuação tão alta quanto a dela). Por isso, Akane acredita ser capaz de fazer algo que ninguém mais pode, pois ela não acredita que existam pessoas irrecuperáveis, além de ter uma alta tolerância ao álcool. É a sua jornada de chocantes surpresas, traumas, decepções e amadurecimento que carrega a narrativa desta 1ªtemporada.



O jovem Shusei Kagari quer apenas pagar a sua dívida e sair...


Como o protagonista masculino da série, temos Shinya Kogami era um Inspetor, mas, após um incidente que resultou na morte de um de seus subordinados, teve seu coeficiente criminal alterado para níveis muito altos, se tornando um dos Executores.

As letais "Dominators" ou "Olhos de Sybila"...


O resto da equipe são Nobuchika Ginoza outro inspetor, colega de Kogami que testemunhou a sua decadência, sendo por isso e por um trauma familiar, um indivíduo tenso e rígido com o comportamento profissional; Tomomi Masaoka, um ex-investigador, de passado obscuro e com uma braço esquerdo protético, que enxerga o potencial de Akame, e lhe dá suporte, ajudando a todos da equipe como uma figura quase-paterna; Yayoi Kunizuka, uma ex-cantora de punk rock e ex-membro de uma organização anarquista, que usa o seu talento de hacker para poder futuramente se reintegrar à sociedade, Shusei Kagari, joven outsider (o piadista do grupo) que também quer cumprir a sua pena e seguir adiante, não ligando muito para os cidadãos comuns a quem deveria proteger, Shion Karanomori, uma sarcástica analista na Divisão Geral de Análise do Departamento de Segurança Pública (e além de tabagista,uma criminosa latente também) sempre “vestida para matar”. Ela fornece apoio aos Enforcers e inspetores em sua investigação, analisando os dados e as provas enviadas por eles. Ela e Yayoi são amantes.

Yayoi Kunizuka e Shion Karanomori, as personagens-fetiche da série...

Temos ainda Joshu Kasei a chefe do Bureau, uma mulher idosa que se interessa pela imunidade do criminoso Shogo Makishima aos Dominators (ver abaixo) e ordena a Nobuchika Ginoza não matar o criminoso. Na realidade ela esconde o grande segredo por trás do Sistema Sybil, recorrendo a expedientes questionáveis contra quem tenta expor a verdade por trás de tudo.
Ao Mestre com Carinho: O terrível Makshyma Shogo e
sua pupila psicopata Rikako Oryo são o mal encarnado ...



Até o episódio 8 o tom da série é investigativo e procedural, com a equipe resolvendo os casos, e com Akane familiarizando-se com a equipe, crescendo o seu valor ao longo deste trajeto, mas, quando emergem as maquinações do já mencionado Makshyma Shogo, vilão refinado e ambíguo, que é capaz de burlar o sistema “Sybil”, que a temporada realmente engata pois Shogo é um perigo real e imediato para o departamento e para toda a coletividade, pois ele vê a vida como um jogo, tanto fazendo para ele matar uma ou centenas de pessoas para provar um ponto, ou apenas quebrar o tédio em armações brilhantes, dignas do Doutor James Moriarty (o adversário figadal de Sherlock Holmes). Shogo poderia ser considerado um “humanista do lado sombrio” obcecado com a crueldade e todos os piores aspectos da natureza humana. 

O inspetor Nobuchika Ginoza e o executorTomomi Masaoka
têm atritos oriundos de um passado em comum...

Um "evangelista" nato,Shogo é possuidor de carisma incomum e com um verdadeiro dom para a narrativa. É mostrado que Makishima pode ser o cérebro por trás dos muitos casos que o Bureau de Segurança Pública está investigando (sendo o responsável pela morte do ex-parceiro de Kogami, e seu rebaixamento de Inspetor para Executor ao causar a sua queda no Psyco-Pass). Apesar de sua intenção assassina, seus níveis do Coeficiente Criminal nunca alcançaram níveis perigosos, tornando-o seguro para as Dominators. Ele próprio afirma que isto é porque a sua própria mente e seu corpo não considerá-lo estar “errado” ao matar pessoas e cometer crimes, pois considera que para ele, isto é perfeitamente "normal", resultando na Psyco-Pass não detectar nada anormal ou ilegal no seu comportamento que o denuncie ao Sistema Sibila, chamando a atenção para ele (ele se veste de branco,em oposição a Kogami, que na maioria das vezes está de preto numa interessante inversão de papéis) e neste embate de antagonistas, Akame paga o seu preço de amadurecer, sendo testados os seus limites sem piedade, embora mudando o seu jeito de ser, ela nunca abdica de seus valores...

Os "Capacetes" isolam as pessoas do sistema,
permitindo-lhes praticar toda a sorte de violência...

A galeria de vilões da temporada ainda incluem Choe Gu-sung (o braço direito do Shogo Makishima) um imigrante coreano que se mudou para o Japão com sua família quando era criança, desprezando a sociedade criada pelo Sistema Sybil, desejando removê-lo. inicialmente um mensageiro, Gu-sung tem um papel maior na série quando ele registra o assassinato de uma mulher nas mãos de um homem imune à Sybil usando um capacete avançado e usando este vídeo para causar vários distúrbios na cidade; a estudante na Oso Academy (uma escola pra moças) Rikako Oryo, que apesar de sua personalidade gentil, é uma serial killer que usa os cadáveres de suas vítimas para criar monumentos de arte para seu pai doente (todos os seus crimes são orquestrados por Shogo Makishima que aparece em sua escola como um de seus professores) e Toyohisa Sengūji, um sociopata, obcecado com a caça esportiva, que conseguiu ampliar sua vida artificialmente, tornando-se um ciborgue, primeiro aparecendo para matar uma subalterna descartada por Makishima, posteriormente trabalhando seus ossos em cachimbos como um dos seus muitos troféus de caça.


A holografia e a realidade virtual estão no cotidiano daspessoas no figurino e no ambiente residencial e profissional...


Enquanto estava criando a animação, o diretor chefe Katsuyuki Motohiro queria uma série que contrariasse as tendências dos animes atuais, precisando para isso de um roteirista carismático, o que o fez convidar Gen Urobuchi para trabalhar junto com ele em 2011, pois a equipe gostou de seu trabalho em Puella Magi Madoka Magica, que eles consideram melhor que Neon Genesis Evangelion. Após ler alguns livros e roteiros escritos por Urobuchi, ele ficou fascinado e convencido de que ele faria um bom trabalho. O design dos personagens foi feito pelo artista Akira Amano. Na criação da série, além dos temas psicológicos baseados nos do anime Lupin III que ele assistiu durante a sua infância. Motohiro permitiu que a equipe usasse os elementos originais desejados pelos criadores, mesmo que isso pudesse afastar o público feminino e infantil, pois também sabia que a série era violenta demais, comentando não queria seu filho assistisse o anime devido a sua "brutalidade psicológica", atiude sábia pois quando é para pressionar, a série não hesita em pisar no acelerador, não poupando os seus personagens.

As duas faces de uma moeda: Shogo Makishima e ,Shinya  Kogami em seu duelo de vida e morte...

 Mesclando grandes doses de ação e violência gráfica com referências à Platão, Rousseau, Shakespeare, Phillip K.Dick (cuja obra “Do androids dream with an electrical sheep?”serviu de inspiração para o filme Blade Runner de Ridley Scott de 1982) entre outros nas falas rebuscadas de Shogo, que se vê como um herói revolucionário, já que consegue mascarar o seu real estado do Sybil como um camaleão que se mimetiza com o ambiente, e com isso ele pretende desmascarar o status quo, que no fundo apenas engaiola os indivíduos em condicionamentos repressores. Assim, temos embates memoráveis entre Shogo e Kogami até o seu desenlace final.

A ambientação urbana e cyberpunk é bem representada,com variedade em seu detalhes sutis e criativos...

Um fator de destaque da animação é a tecnologia virtual incorporada ao uso da vida cotidiana, permitindo aos personagens mudar o aspecto visual da decoração da sua casa e até das suas roupas com um “click” de laptop, além de itens de camuflagem como os '"Konshans" que permitem aos policiais andarem mimetizados na multidão, ou até se “mascarar” pessoalmente do sistema usando capacetes que Shogo prepara e distribui durante um levante, para estimular às pessoas a praticarem crimes violentos, disseminando o caos.

O clímax se dá na área rural,numa central de processamento,
onde a agricultura é automatizada e seus espaços amplos
fogem do estereótipo dos espaços urbanos restritos...


No cômputo final Psyco-Pass é um ótimo anime de ação e aventura policial que vale a pena ser visto, e leva a pensar neste tempos de liberdade vigiada a que vivemos quando cada vez mais motivados pelo medo, e em nome da segurança abdicamos gradativamente de valores individuais que definem a nossa humanidade básica.

Os suspeitos de sempre...


*:Deve-se chamar a atenção da Netflix para o fato de nas suas legendas trocaram o termo “Enforcer” por “Miliciano” o que é problemático, uma vez que glamouriza o termo, dndo-lhe uma dimensão “” e sabemos todos muito bem que milicianos são criminosos, mafiosos da pior espécie que aqui no Brasil dominam comunidades inteiras como senhores feudais. Outra falha grave que temos observado é que em outros animes sempre que aparece algum monge, a legenda traduz como “pastor”o que dá uma conotação neopentecostal inexistente, pois “todo monge é no fundo um pastor, mas nem todo pastor (a grande maioria) é monge. Já tenho observado essa “guerra de narrativas” há algum tempo, desde que o Brasil começou a comprar o discurso da extrema-direita e seus associados.


sexta-feira, 17 de abril de 2020

Crítica – Filmes: O Oficial e o Espião



Provas vs.“Convicção”

por Alexandre César



Roman Polanski e a avó das "fake news" 

 

Um denso drama histórico e político.

Sendo um dos mais notórios casos de erro judicial da história, o “Caso Dreyfus” em que um capitão do 14ºRegimento de Artilharia do exército francês foi injustamente acusado de alta traição, julgado e condenado em 22 de dezembro de 1894, passando cerca de cinco anos na “Ilha do Diabo”, uma colônia penal na Guiana Francesa já rendeu boas obras cinematográficas*, ora focados na figura de Émile Zola**, célebre escritor e seu defensor nas páginas dos jornais (autor de J’Accuse, artigo de 1898 que dá nome aos responsáveis pela farsa), ora na figura do próprio Alfred Dreyfus, cuja luta para suportar a provação e manter a sua dignidade contra tudo e contra todos enfrentando o antisemitismo crônico da virada do século XIX/ XX (que tornaria a Europa um inferno décadas depois e que hoje resurge em várias nações.), e até mesmo em outras figuras públicas que o apoiaram a sua luta como o escritor Anatole France, o jornalista Bernard Lazare ou os políticos Aristide Braind e Georges Clemenceau, estadista da época (e futuro presidente da França em1906), entre outras na Europa e além***ainda hoje reflete a luta dos indivíduos face às engrenagens do poder, que quando erram, preferem usar de mais força ainda para abafar sua falhas, pois para ele, admitir falibilidade é algo fatal, sendo mais conveniente e fácil destruir reputações alheias do que expor os mandatários do poder.


O capitão Alfred Dreyfus (Louis Garrel) é conduzido 
ao pátio do quartel acusado injustamente de alta traição...

Para se ter uma ideia, no final do século XIX a maioria dos jornais franceses estava inteiramente cooptada pela decisão da Justiça contra Dreyfus, sendo ela cúmplice com suas manchetes cobrando a condenação com penas duras e vergonhosas e ao final fizeram uma festa em tom cívico quando ele foi degradado perante à tropa, expulso do Exército e deportado. Coisa muito familiar aos últimos anos de certos países latino-americanos não?


A cerimônia de degradação é particularmente humilhante...

Dirigido por Roman Polanski (Baseado em Fatos Reais) O Oficial e o Espião (2019) mostra o polêmico diretor em grande forma de sua capacidade narrativa, inovando aqui ao optar por se focar não no mais célebre e central personagem do caso, mas sim num outro menos evidente, mas que revelou as falhas do processo, e por tabela a mecânica do sistema em criar e torcer narrativas, coisa muito atual nesses nossos tempos de fake news em que reputações e vidas são destruídas por argumentos tão vazios quanto um arquivo de Powerpoint feito de forma amadora.

O General Gonse (Hérve Pierre, de costas) convoca o 
Major Picquart (Jean Dujardin) para chefiar uma seção
 da inteligência militar...

O roteiro, escrito por Polanski em parceria com Robert Harris (O Escritor Fantasma) baseado em seu livro An Oficer and a Spyse foca na figura do Major Marie-Georges Picquart (Jean Dujardin de O Artista ótimo numa performance contida) figura decisiva da trama, que havia sido professor de Alfred Dreyfus (Louis Garrel de Adoráveis Mulheres) na École Militaire e, inicialmente antisemita, é convocado pelo Gen. Gonse (Hérve Pierre de Momo) chefe do Serviço Secreto a assumir a “Seção de Estatísticas”, substituindo o Col. Sandherr (Eric Ruf de Maryline) que estava inválido em decorrência da sífilis, e, sendo neste processo promovido a Tenente-Coronel (na época o mais jovem do exército francês). Picquart herda além de Sandherr uma mala com $ 48.000 francos em fundos secretos (para oprações sigilosas e comprometedoras) e uma pasa com uma lista de 2.500 suspeitos de traição, a maioria estrangeiros, para serem presos em caso de guerra, evidenciando o clima da época quando a França havia perdido a região da Alsácia-Lorena para a Alemanha.


O Major Henry (Grégory Gadebois) esperava, antes de 
Picquart ser indicado, chefiar a "Seção de Estatística"...

A “Seção de Estatística” tem o rude Major Henry****(Grégory Gadebois de Simon) como o 2º em comando, cujos oficiais analisam provas violando correspondência e colando cartas e bilhetes picados, de forma “intuitiva”, recuperando a correspondência do adido militar alemão Col. Schwartzkoppen, que tem caso com o adido militar italiano Major Panizzardi e logo, Picquart acaba esbarrando em evidências da inocência de Dreyfus ao analisar uma nova carta que a mesma agente do caso encontra, no mesmo escritório (do adido militar alemão) na qual o remetente promete entregar aos alemães mais segredos militares franceses, e cuja caligrafia é bem mais parecida com a da prova incriminatória do que a de Dreyfus, botando por terra a análise de Bertillon (Mathiew Amalric de Um Banho de Vida) o grafologista, que confundiu com a letra de Dreyfus, ficando evidente que o traidor estava à solta...


O real traidor: Charles Ferdinand Esterhazy (Laurent Natrella)
 que fazia aulas de artilharia sem ser da artilharia...

Picquart toma a si as investigações e consegue relacionar a letra com a de outro oficial, o major Charles Ferdinand Esterhazy (Laurent Natrella de Os Olhos de Cabul), aventureiro de origem húngara com vultosas dívidas de jogo.Ao acompanhar as investigações do caso, Picquart trava um interessante diálogo com o investigador Jean Alfred Desvernine (Damien Bonnard de Dunkirk) num Museu, trocando instruções enquanto fingem admirar as estátuas:
- 'Apolo'. É grego?
- Não é uma cópia romana, o original está perdido.
- Quer dizer que é falso!
- Não, é uma cópia. É diferente.
Um diálogo banal, mas que reflete a essência da trama, onde a mentira se sobrepõe à verdade, a justiça torna-se injusta, a falsa traição esconde o verdadeiro traidor e a honra militar transforma-se em vergonha.

Momento Impressionismo: Picquart secretamente é amante 
de Pauline Monnier (Emmanuelle Seigner) casada 
com Philippe (Luca Barbareschi)...

Logo, ao mostrar não querer compactuar com a farsa e prestes a reabrir o caso, Picquart é transferido para a Tunísia. Porém, ele comunica suas suspeitas a seu advogado que, por sua vez, as revela aos políticos liberais e ao Senado mostrando a determinação das Forças Armadas em preservar sua "honra" minando o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei (conceito que incorpora a própria essência de qualquer governo republicano) iniciando uma campanha pela reabertura do caso, com um novo julgamento. Picquart vai preso e tem sua intimidade devassada por conta de seu relacionamento com Pauline Monnier (Emmanuelle Seigner de Baseado em Fatos Reais) sua amante casada e, o resto é história...

O tempo vai passando, mais devagar ainda para Dreyfus,
 apodrecendo na "Ilha do Diabo"...

A música bem compassada de Alexandre Desplat (Ilha dos Cachorros) aliada à fotografia de Pawel Edelman (O Pianista) e à montagem de Hervé de Luze (Não Conte à Ninguém) criam ótimas cenas, como logo na cena de abertura, quando Dreyfus é exposto à vergonha pública e expulso das Forças Armadas, fica definido o processo de esmagamento a que será submetido ao longo do filme, mostrando em sua pulsante atuação, o timbre de sua voz (quase inaudível) defendendo aos gritos a sua inocência, abafada pelos gritos da turba à volta do pátio do quartel, a sua derrocada está traçada, num rumo de degradação física e psíquica, em sintonia com o clima gélido da solenidade de sua humilhação, num dia frio e escuro, refletindo o seu esmagamento pelos mecanismos da injustiça.

Bertillon (Mathiew Amalric) o grafologista que Picquart 
percebeu ter erroneamente ligado a caligrafia de 
Dreyfus à da correspondência suspeita...

Como os cabeças da conspiração militar, o Gen. Mercier (Wladimir Yordanoff de Boomerang), o Gen. Pellieux (Laurent Stocker de A Casa de Veraneio), o Gen. Boisdeffre (Didier Sandre de Um Amor Impossível) e o Gen. Billot (Vincent Grass de No Portal da Eternidade) cada um defendendo seus pontos de vista reacionários de uma  “França livre da conspiração judia e de estrangeiros”
e que não podem admitir que erraram (chegando ao cúmulo de liberar o verdadeiro culpado) para que o mundo não os veja como fracos, dialogando com o discurso atual da extrema-direita e seus líderes mesquinhos e paranóicos.

O advogado Labori (Melvil Poupaud) e Émle Zola 
(André Marcon) partidários de Dreyfus nos tribunais...

Temos ainda do outro lado o advogado Leblois (Vincent Perez de Os Aeronautas), e em pequena participação Émile Zola (André Marcon de O Melhor Está Por Vir), Georges Clémenceau (Gérard Chaillou de Assassinato Em 4 Atos e que já viveu Clemenceu num telefilme de 2012) e Philippe Monnier (Luca Barbareschi de Dolceroma) marido de Pauline que aparece no início num pic-nic bucólico com os amigos, evocando as pinturas do impressionismo.

"Em Nome da Honra do Exército Francês": Alguns dos 
cabeças da farsa, os generais Billot (Vincent Grass) e
 Boisdeffre (Didier Sandre) & Cia. fizeram de tudo 
para ocultar a verdade...

Visualmente o desenho de produção de Jean Rabasse (Ladrão de Sonhos) trabalha bem as referências históricas, criando espaços marcantes como o teatro decadente iluminado à lampiões, com suas dançarinas de Can-Can onde Picquart e Desvernine espiam Esterhazy com sua amante ou, a sede da “Seção de Estatística”, que fica num prédio mal-cuidado, próximo ao esgoto, com janelas que não abrem, sendo de pouca ventilação. Com seus tons escuros em tons de marron, verde, cinza, coisa que a direção de arte de Dominique Moisan (Anna: O Perigo Tem Nome) e a decoração de sets de Philippe Cord`homme (Gaças a Deus) ajudam muito a caracterizar onde esses personagens habitam e seus estados emocionais pois tal qual na “Seção”, este aspecto mofado se reflete no quarto do Col. Sandherr, que lembra o leito de um vampiro, contrastando com o apartamento de Picquart, austero, mas aconchegante, como quando recebe Pauline, sendo ela quem traz os momentos mais leves e descontraídos ao filme. Seigner, de forma sutil mesmo na meia idade ainda carrega a volúpia do olhar dos tempos de Lua de Fel (1992) sendo a sua participação um momento de respiro no clima tenso da película, sendo a sua presença valorizada pelos figurinos de Pascaline Chavanne (Rodin) que lhe dão um toque de figura dos quadros de Renoir.

Picquart acaba sendo preso e processado pelo exército,
 acusado de traição...

Ao final, somente em 1906, quando Clemenceau, um dos defensores de Dreyfus, assumiu a presidência da França, e em 12 de julho desse ano, a Corte de Cassação anulou o julgamento de Rennes, reabilitando o capitão Dreyfus, reintegrando-o ao exército como major e condecorando-o com a Legião de Honra, embora tenha sofrido um atentado de que escapou em 1908.

Picquart vai a julgamento, sendo posteriormente absolvido...

Paralelamente, Picquart era nomeado ministro da Guerra, Dreyfus se ressentia de não ter sido levado emconta o seu tempo de 8 anos preso injustamente para conceder-lhe a promoção para a patente de major (embora os 8 anos que Picquart ficou fora do exército foram considerados como se tivessem sido passados na ativa, dando-lhe a patente e general...) pois se lhe fosse dado um tratamento justo ele já seria tenente-coronel, coisa que foi inviabilizado porque havia muitos inimigos***** de sua absolvição no exército e nos meios políticos para se corrigir este erro e assim ele seguiu, tendo participado da Primeira Guerra Mundial, vindo a morrer em 1935, dois anos depois de Adolf Hitler tornar-se chanceler alemão.


Ao final apesar de sua ligação com Pauline vir à público,
 Picquart e ela conseguem um arranjo satisfatório...

Recordando a célebre frase de Mark Twain: “Mais difícil do que enganar uma pessoa é convencê-la de que ela foi enganada!” O Oficial e o Espião reflete sobre o “cair a ficha”de consciência e a nossa capacidade de reformular julgamentos face à fatos palpáveis, ficando claro porém, que nem todos são capazes disso, principalmente quando interesses institucionais pela manutenção do status quo se impõem, como quando os meios de comunicação clamam que o “combate à corrupção” não deve ser submetido ao contraditório, a discordância, ou mesmo a uma simples crítica, exigindo adesão absoluta, com práticas questionáveis como abusos contra prisioneiros submetidos a prisões preventivas, com o óbvio objetivo de produzir delações.


Ao final de uma longa batalha Dreyfus foi inocentado e 
reintegrado ao exército, mas ainda sim a sua 
ascenção hieárquica foi prejudicada...

 Tal como na Berlim da década de 1920, de O Ovo da Serpente (1977) de Ingmar Bergman, a “cadela do fascismo” está à solta, num cio desvairado, cabendo a nós lidar com ela...

O artigo "J´Accuse..." ("Eu Acuso!") da autoria de Émile Zola
 até hoje é citado nas aulas de direito processual como
 um dos grandes libelos pelas liberdades individuais...

*: Dreyfus, de Richard Oswald (Alemanha, 1930); The Dreyfus Case, de F.W. Kraemer e Milton Rosmer (Reino Unido, 1931); The Life of Emile Zola, de William Dieterle (EUA, 1937); I Accuse!, de José Ferrer (EUA/Reino Unido, 1958); Dreyfus ou lIntolérable Vérité, de Jean Chérasse (França, 1975) além das séries e telefilmes Affäre Dreyfus, de Hanns Farenburg (Alemanha Ocidental, 1959); Affäre Dreyfuss,série de TV (Alemanha Ocidental, 1968); Prisoner of Honor, de Ken Russell (EUA/Reino Unido, 1991); Rage and Outrage: The Dreyfus Affair, de Raoul Sangla (Canadá/França/Reino Unido, 1994); L’Affaire Dreyfus, de Yves Boisset (França/Alemanha, 1995) além de vários curta-metragens.
**: Hoje celebrado em coquetéis de fim de curso de jornalismo, Zola na ocasião foi perseguido, processado e condenado à prisão, sendoque sua morte em 1902 por asfixia até hoje permanece não esclarecida.
***: Dentre as vozes que se levantaram em defesa de Dreyfus encontrava-se a do brilhante advogado e escritor brasileiro Rui Barbosa, que vivendo, à época, na Inglaterra, onde se auto-exilara após seu rompimento com o governo do Marechal Floriano Peixoto, Rui Barbosa escreveu um inflamado artigo denunciando os fatos que envolveram o oficial judeu. Datado de 7 de janeiro de 1895, dois dias antes da degradação do capitão francês, foi publicado no Brasil, no Jornal do Comércio, no mês seguinte.
****: Joseph Henry, que ficara à frente à Seção após o afastamento de Picquart, e falsificou documentos cerca de um ano antes com o objetivo de ligar Dreyfus aos alemães, só que o novo ministro da Guerra, Godefroy Cavaignac desconhecia o andamento do reexame dos autos que ele próprio pedira, no intuito de liquidar de vez o Caso Dreyfus, mas o seu ajudante-de-ordens, o capitão Louis Cuignet, após estudar atentamente o documento, concluíra que era grosseiramente forjado e assim, Cavaignac não teve outra alternativa e no dia 30 de agosto de 1898, convocou Henry ao seu gabinete, que “encostado na parede”, confessou a fraude e na noite de 31 cortou a garganta com uma navalha, suicidando-se. Três dias depois, Lucie Dreyfus voltava a exigir a revisão do processo de seu marido.
*****: Em 1985, o presidente François Mitterrand ofereceu uma estátua de Dreyfus à Escola Militar. O Exército recusou-se a exibi-la e, hoje, está exposta nos Jardins das Tulherias. Somente em 1995, mais de um século após a deportação do capitão para a Ilha do Diabo, sua inocência foi reconhecida pelas Forças Armadas depois que um historiador oficial do Exército provocou um escândalo ao questionar publicamente a injustiça humana e histórica cometida.

O "Caso Dreyfus" permanece como um dos maiores 
exemplos de "- Não tenho provas mas tenho convicção" 
da história...