Frio,
mas vai esquentando...
por Alexandre
César
Série começa devagar mas logo acelera e se firma
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A versão de Bong Joon-Ho de 2013 com Chris Evans, Tilda Swinton, John Hurt entre outros...
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Surgido
em 1982,a graphic
novel
francesa Le
Transperceneige
(O
Perfuraneve)
de Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jen-Marc Rochette apresentava uma
distopia com ótima alegoria sobre a luta de classes ao mostrar um
mundo glacial, onde os remanescentes da espécie humana habitam um
gigantesco trem em movimento contínuo numa volta ao mundo (num moto
perpétuo) vivendo num sistema de
castas em que os ricos têm ótimas acomodações, alimentação, e à
medida que vamos descendo de classe social, o espaço, comida, etc...
vão decaindo até chegarmos nos últimos vagões, onde os fundistas
vivem como párias na fome, miséria e desesperança. Familiar, não?
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Melanie Cavill (Jennifer Connelly) e Ruth Wardell (Alison
Wright) fazem relações públicas com os ricos passageiros... |
Alçada
como um dos grandes clássicos modernos da ficção-científica, a
obra ainda que desconhecida do grande público logo chamou a atenção
de Hollywood,
que associou-se ao (atualmente laureado com o Oscar
por Parasita)
diretor sul-coreano Bong Joon-Ho (O
Hospedeiro)
que junto com Kelly Masterson (Quem
Matou Kennedy?) adaptou a obra para
o formato de longa-metragem em 2013 estrelado por Chris Evans, Song
Kang-ho, Tida Swinton, Jamie Bell, Octavia Spencer, Go Ah-sung, John
Hurt e Ed Harris como o plutocrata Sr.Wilford, o dono do trem. Quando
lançado no ocidente, teve um complicado processo de distribuição,
que resultou no seu fracasso na bilheteria, mas que chamou atenção
suficiente de produtores americanos para uma nova adaptação, agora
formatada como série de televisão.
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Amor fundista: Andre Layton (Daveed
Diggs) o último detetive, e Josie Wellstead (Kate McGuinness) aguerrida sobrevivente... |
Mesmo
com o cineasta coreano à bordo como produtor executivo,a nova
trajetória do Snowpiercer
foi turbulenta desde a aquisição dos direitos em 2015 até chegar
ao ar em 2020, com a troca de showrunners,
e de emissoras (originalmente pela TNT,
foi para a TBS,
retornando depois para a TNT
e sendo aqui veiculada pela Netflix),
roteiros reescritos, novas direções e tudo o que poderia dar
errado, e neste processo, quase descarrilando completamente o
projeto, que inicialmente tinha Josh Friedman (O Exterminador do Futuro: Destino Sombrio)
como showrunner,
que logo, em função das famosas “diferenças criativas”, foi
substituído por Graeme Manson (Orphan
Black) que aceitou o desafio de
pegar um conceito fascinante e complicá-lo (no bom sentido) de
maneira lógica e eficiente.
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Os maquinistas Bennett Knox (Iddo Goldberg) e o "Arrombador" Boscovic (Aleks Paunovic) McGuinness enfrentam e superam muitos obstáculos técnicos que surgem pelo caminho... |
Com
um preâmbulo em animação, contextualizando a história, onde após
uma tentativa mal sucedida de engenharia climática, tentando de
parar o aquecimento global acaba involuntariamente criando uma nova
era glacial, logo nos focamos na invasão do trem por diversas
pessoas desesperadas no dia de sua partida e que ficaram relegadas a
alguns vagões no final deste trem de 1.001 vagões em moto-perpétuo
ao redor do planeta, em terríveis condições de vida e o jugo
opressor daqueles que ocupam os vagões da frente, e passados quase
sete anos em que se consolida o constante sentimento de revolta dos
fundistas
com o que sofrendo sem comida, calefação boa e condições de
higiene numa mais do que óbvia analogia com o mundo de hoje em
termos de divisão de classes. Acompanhamos Andre Layton (Daveed
Diggs de Ponto
Cego)
detetive (provávelmente o último do mundo) e líder fundista que é
convocado por Melanie Cavill (Jennifer Connelly de Alita: Anjo de Combate)
que dita as ordens à bordo em nome do misterioso Sr. Wilford (sempre
ausente) para resolver um crime no melhor estilo Assasinato no Expresso do Oriente,
e ele, como membro da classe inferior passageiros do fundo da cauda
do trem, vê nesta tarefa uma maneira de fazer um reconhecimento do
ambiente, para mais adiante levar uma revolução contra a elite da
frente do trem.
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Luta de classes: Robert (Vincent Gale), Lilah (Kerry
O´Malley) e L.J. Folger (Annalise Basso) são a elite, o que se reflete em seus trajes, cabelo e acessórios...
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...contrastam com os trajes utilitários dos soldados ou da operadora Bess Till (Mickey Sumner) ou, dos trapos de Layton...
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Embora
a trama investigativa pareça alheia a tudo o que é mostrado, sirva
para apresentar ao espectador este microcosmo, a confusão sofrida
pela produção da série ao longo destes cinco anos se reflete nos
primeiros episódios, que são legais, mas num ritmo morno, não
engajando o espectador inicialmente, apesar de gradativamente ir
ganhando camadas e mais camadas para complicá-la e justificar um
material antropologicamente tão rico e possibilitar as reviravoltas
da segunda metade da temporada, que é quando a série encontra a sua
voz e se firma.
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Quando eclode a revolução Miss Audrey (Lena Hall), Bess Till e Layton forjam uma aliança... |
Do
lado de Layton, temos entre os fundistas “Big
John”
(Jonathan Walker de Continuum)
um dos líderes, veterano de outros levantes sufocados; o “Último
Australiano”
(Aaron Glenane de Mr.
Inbetween)
pau-para-toda-a-obra
meio atrapalhado; Josie Wellstead (Kate McGuinness de Hollywood)
“mãe” de “Miles
Miles”
(Jaylin Fletcher de A
Química do Amor)
garota órfão que é designado para trabalhar na locomotiva como
aprendiz (tornando-se importante para a revolução) e “Lights”
(Miranda Edwards de The
Strain)
lutadora casca-grossa
mas de raciocínio sagaz. Todos esperando a hora de lutar para tomar
o poder no trem e estabelecer uma sociedade menos estratificada à
bordo.
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O brutal comandante Grey (Timothy V. Murph) faz Layton e os fundistas passarem maus momentos...
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Quanto
à Melanie, descobrimos que ela tomou o Snowpiercer
de Wilford, pois ele havia pervertido o seu projeto inicial (ela é
que projetou o trem) vendendo passagens a milionários e pouco se
importando com o futuro da humanidade, querendo apenas sobreviver com
o maior luxo possível.ela mantém o sistema de catas herdado
tentando gradativamente torná-lo mais humano (sem muito sucesso)
tendo de tomar muitas vezes atitudes indigestas, revelando o seu lado
humano arás da atitude gélida que expõe para os passageiros e
subalternos. Ela conta com o maquinista Bennett Knox (Iddo Goldberg de
Faith)
com quem tem um caso, e com a sua auxiliar Ruth Wardell (Alison
Wright de Castle
Rock)
que tem uma adoração messiânica pelo Sr. Wilford (é o “mito”
dela) mas sente que o equilíbrio de forças à bordo está se
deteriorando neste sete anos de viagem ininterrupta em torno do
globo, deteriorando-se como inevitavelmente os equipamentos do trem
(num episódio Knox diz a Miles que embora o movimento perpétuo do
trem dê um suprimento ilimitado de energia, “um
dia todos morrerão por causa da pane de algum componente
insignificante”)
e os próprios trilhos, que um dia irão colapsar...
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Ao longo da temporada o logo se alterna de posição, ora ficando um "W" (Wilford) ora ficando um "M" (Mellanie) refletindo um duelo ideológico... |
Dentre
os membros da 1ª
classe, se destacam o casal milionário Robert (Vincent Gale de Van
Helsing) e Lilah Folger (Kerry
O´Malley de Joven Sheldon)
pai e mãe de L.J. Folger (Annalise Basso de Slender
Man: Pesadelo Sem Rosto) jovem
mimada e envolvida na trama investigativa e interessados em depor
Melanie e ditar as regras no expresso,trazendo para o seu lado o
comandante Grey (Timothy V. Murph de Westworld)
chefe da bem armada tropa de segurança interna.
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O layout do "Snowpiercer" e seus 1001 vagões... |
Já
na 2ª
Classe temos Miss
Audrey
(Lena Hall de Girls)
a chefe do cabaré, que trabalha com Zarah Ferrami (Sheila Vand de
Argo)
ex-fundista e antigo amor de Layton; e Jinju Seong (Susan Park de
Fargo)
nutricionista e amiga que compartilha o segredo de Mellanie.
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Forma e função: A direção e arte acertou no design dos ambientes internos dos vagões... |
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...como o do salão da Primeira Classe acima, aqui, o do vagão-escola e o da locomotiva... |
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...refletindo a funcionalidade dos espaços internos com soluções interessantes... |
E
temos 3ª
Classe, a dos operários do trem, o
grupo mais importante para a revolução, onde destacam-se Roche
(Mike O´Malley de O Bom Lugar)
chefe de operações de segurança e Bess Till (Mickey Sumner de
História de um Casamento)
a sua braço-direito e
amante de Jinju; John Osweiller (Sam Otto de Collateral)
operador, ex-atleta de caráter dúbio; a Dr. Pelton (Karin Konoval
da nova trilogia Planeta dos Macacos)
e o Dr. Henry Klimpt (Happy Anderson de The
Tick) que cuida dos pacientes das
“gavetas”
onde passageiros condenados ficam em hibernação induzida.
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Os efeitos visuais acertaram no visual, dentro dos limites orçamentários... |
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... mostrando esse mundo árido e gelado de cidades, países e continentes congelados... |
Surpreendentemente,
a trama investigativa dos crimes, que dava a impressão de que se
extenderia por toda a temporada, se soluciona no sexto episódio,
tendo logo em seguida um julgamento que divide o equilíbrio de
classes dentro do trem e logo em seguida abrindo o caminho para a
revolução, quando o ritmo se acelera e alianças se fazem enquanto
outras se desfazem, levando Layton a ter de aprender a lidar com o
peso das decisões que uma guerra cobra. E todas as conseqências das
decisões tomadas vem cobrar o seu preço em ritmo acelerado, se
engatando em você e pisando hora no acelerador, hora no freio...
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Ruth assume uma postura reacionária defendendo obstinadamente a figura do Sr. Wilford, o seu "mito"... |
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...em contraste com a atitude compassiva de Josie, que é solidária com todos, na miséria dos vagões do fundo... |
Os
figurinos de Cynthia Ann Summers (Lemony Snicket: Desventuras em Série)
e Caroline Cranston (Smallville)
marcam bem a pirâmide social dos personagens,com as classes bem
separadas visualmente, nos figurinos e penteados, com os trajes
delicados, coloridos e refinados da Primeira Classe, com os
padronizados, sóbrios, mas elegantes da Segunda Classe, os meramente
funcionais da Terceira e dos soldados, até os trapos mulambentos dos
fundistas de tons pretos, cinzas, terrosos e sujos.
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As paisagens apesar de realistas, guardam semelhanças com as imagens dos quadrinhos... |
O
desenho de produção de Barry Robison (X-Men Origens:
Wolverine) é criativo na criação dos espaços internos do
Snowpiercer, cuja direção de arte de Paul Alix (Alita: Anjo de Combate), Thomas P. Wilkins (Mulan) e
Gwendolyn Margetson (The Terror) e a decoração de
sets de Louise Roper (Okja) aproveitam o espaço
confinado que facilita a produção em termos orçamentários,
revelando o cuidado na criação de um espaço interno lógico e bem
determinado, contrastando o luxo das áreas da Primeira Classe com os
espaços mais funcionais das outras classes, que vão ficando mais
apertadas e menos coloridas, revelando momentos criativos como o
vagão aquário que leva à preparação de sushi, que embora não
seja extraordinário, revela o cuidado com os detalhes, nos dando de
vontade ver mais, além desse surreal mini-universo em constante
movimento que se revela credibilidade sem muita forçação de barra.
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Jinju Seong (Susan Park), nutricionista e companheira de Bess Till, compartilha dos segredos de Mellanie... |
Em
termos visuais a fotografia de John Grillo (The Leftovers)
e Thomas Burstyn (Salvation) contrasta os tons cinzas e
azulados das entranhas do Expresso enfatizando seu aspecto frio e
inóspito mais escuros do que o inferno gelado exterior (quase sempre
iluminado) caminhando com a edição de Jay Prychidny (Orphan
Black), Cheryl Potter (Perdido em Marte), Marta
Evry (O Pacífico), Allan Lee (Loudermilk),
Steve Polivka (Justified) e Rebecca Valente (O
Paradoxo Cloverfield) que mentém a narrativa em movimento,
embora não acelerada, embalada pela trilha de Bear McCreary
(Battlestar Galactica) que incorpora sons mecânicos na
atmosfera da música, apesar de não ser o seu trabalho mas
inspirado, mas que vai num crescendo nos últimos episódios.
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A ex-amada de Layton Zarah Ferami (Sheila Vand) é forçada por Mellanie a uma atitude questionável... |
Devemos
elogiar os efeitos visuais da Torpedo Pictures que
eficientemente dentro do orçamento de um seriado televisivo
conseguiram bons visuais nas externas desse mundo desolado enos
percalços que o Snowpiercer enfrenta em seu trajeto
ininterrupto, como quando o Snowpiercer passa por uma
avalanche e uma janela se quebra no vagão-celeiro matando por
congelamento o gado, ou quando ele tem de desengatar alguns vagões
durante a revolução, ou ainda ao cruzar com um “elo” de
ligação com as suas origens...
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"Big Alice", o protótipo do "Snowpiercer" e a grande surpresa do final, cujo design remete às antigas locomotivas à diesel... |
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...prometem mais revoluções a acontecer dentro nos vagões... |
Ao
final da temporada O Expresso do Amanhã ganha fôlego
e surpreende, deixando o tom morno da primeira metade para trás,
subvertendo expectativas do que nos havia sido colocado desde o
início e, apontando num senhor gancho para a próxima temporada, em
que já temos confirmada a presença de Sean Bean (Game of Thrones) como o Sr, Wilford (seja presencialmente, seja em
flashbacks) e logo de cara já percebemos que o desafio mais
fácil para Layton e os fundistas era fazer a revolução...